A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma
ferramenta de emancipação.
Uma dessas ciladas é a ideia de que nós,
seres humanos, possuímos uma identidade essencial:
somos o que somos
porque estamos geneticamente programados.
Ser-se mulher, homem, branco,
negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz,
tudo isso surge como
condição inscrita no ADN.
Essas categorias parecem provir apenas da
Natureza.
A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de
um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha.
Simone de
Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma.
Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade.
Aquilo que
somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas,
mas
a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com
a realidade envolvente.
A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre
categorias existenciais.
Na realidade, de pouco vale a leitura se ela
não nos fizer transitar de vidas.
De pouco vale escrever ou ler se não
nos deixarmos dissolver por outras
identidades e não reacordarmos em
outros corpos, outras vozes.
A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto.
Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes.
E o
segredo é estar disponível para que outras lógicas nos
habitem, é
visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades.
É fácil sermos
tolerantes com os que são diferentes.
É um pouco mais difícil sermos
solidários com os outros.
Difícil é sermos outros, difícil mesmo é
sermos os outros.
Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'

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