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segunda-feira, 25 de maio de 2020

A violência oculta

A primeira razão por que a violência maior 
actua de modo silencioso,
e das poucas vezes que falamos dela falamos 
apenas da ponta do icebergue.
Nós acreditamos que estamos perante fenómenos de violência 
apenas quando essa tensão assume proporções visíveis, quando 
ela surge como espectáculo mediático.
Mas esquecemos que existem formas de violência oculta 
que são gravíssimas.
Esquecemos, por exemplo, que todos os dias,
no nosso país, são sexualmente violentadas crianças.
E que, na maior parte das vezes, os agressores não são estranhos.
Quem viola essas crianças são principalmente parentes.
Quem pratica esse crime é gente da própria casa.

Nós temos níveis altíssimos de violência doméstica, em particular, 
de violência contra a mulher.
Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos.
Fala-se disso em algumas ONGs, em alguns seminários.
A Lei contra a violência doméstica ainda não foi aprovada na 
Assembleia da República.

Existem várias outras formas invisíveis de violência.
Existe violência quando os camponeses são expulsos sumariamente 
das suas terras por gente poderosa e não possuem meios para 
defender os seus direitos.
Existe uma violência contida quando, perante o agente corrupto 
da autoridade, não nos surge outra saída senão o suborno.
Existe, enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo.

E existe essa outra violência maior que é considerarmos a 
violência como um facto normal.
Existe, em suma, essa terrível aprendizagem de negarmos em 
nós mesmos tudo que nos ensinaram como valor humano: 
o ser solidário com os outros, os que sofrem.

Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'

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