loading...

terça-feira, 5 de maio de 2020

Cantiga do Rosto Branco

MACHADO DE ASSIS
Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibeima os olhos pousa,
          E amou a flor das belas. 


“Quero-te!” disse à cortesã da aldeia;
“Quando, junto de ti, teus olhos miro,
A vista se me turva, as forças perco,
          E quase, e quase expiro.” 


E responde a morena requebrando
Um olhar doce, de cobiça cheio:
“Deixa em teus lábios imprimir meu nome;
          Aperta-me em teu seio!” 


Uma cabana levantaram ambos,
O rosto branco e a amada flor das belas...
Mas as riquezas foram-se co’o tempo,
          E as ilusões com elas. 


Quando ele empobreceu, a amada moça
Noutros lábios pousou seus lábios frios,
E foi ouvir de coração estranho
          Alheios desvarios. 


Desta infidelidade o rosto branco
Triste nova colheu; mas ele amava,
Inda infiéis, aqueles lábios doces,
          E tudo perdoava. 


Perdoava-lhe tudo, e inda corria
A mendigar o grão de porta em porta,
Com que a moça nutrisse, em cujo peito
          Jazia a afeição morta. 


E para si, para afogar a mágoa,
Se um pouco havia do licor ardente,
A dor que o devorava e renascia
          Matava lentamente. 


Sempre traído, mas amando sempre,
Ele a razão perdeu; foge à cabana,
E vai correr na solidão do bosque
          Uma carreira insana. 


O famoso Sachem, ancião da tribo,
Vendo aquela traição e aquela pena,
À ingrata filha duramente fala,
          E ríspido a condena. 


Em vão! É duro o fruto da papaia,
Que o lábio do homem acha doce e puro;
Coração de mulher que já não ama
          Esse é inda mais duro. 


Nu qual saíra do materno ventre,
Olhos cavos, a barba emaranhada,
O mísero tornou, e ao próprio teto
          Veio pedir pousada. 


Volvido se cuidava à flor da infância
(Tão escuro trazia o pensamento!)
“Mãe!” exclamava contemplando a moça,
          “Acolhe-me um momento!” 


Vinha faminto. Tibeima, entanto,
Que já de outro guerreiro os dons houvera,
Sentiu asco daquele que outro tempo
          As riquezas lhe dera. 


Fora o lançou; e ele expirou gemendo
Sobre folhas deitado junto à porta;
Anos volveram; co’os volvidos anos,
          Tibeima era morta. 


Quem ali passa, contemplando os restos
Da cabana, que a erva toda esconde,
Que ruínas são essas, interroga.
          E ninguém lhe responde. 


Machado de Assis, in 'Americanas'

Sem comentários: