loading...

domingo, 10 de maio de 2020

Estamos nós realmente salvando o Mundo?

Hoje a pergunta com que nos confrontamos é simples: estamos nós realmente salvando o mundo?
Não me parece que a resposta possa ser aquela que gostaríamos.
O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.
Mas nem o mundo está sendo salvo nem ele nos salva enquanto seres de existência única e irrepetível.
Alguns de nós estarão fazendo coisas que acreditam ser importantíssimas.
Mas poucos terão a crença que estão mudando o nosso futuro.
A maior parte de nós está apenas gerindo uma condição que sabemos torta, geneticamente modificada
ao sabor de um enorme laboratório para o qual todos trabalhamos mesmo sem vencimento.

Se alguma coisa queremos mudar e parece que mudar é preciso, temos que enfrentar algumas perguntas.
A primeira das quais é como estamos nós, biólogos, pensando a ciência biológica?
Antes de sermos cientistas somos cidadãos críticos, capazes de questionar os pressupostos
que nos são entregues como sendo «naturais».
A verdade, colegas, é que estamos hoje perante uma natureza muito pouco natural.

E é aqui que o pecado da preguiça pode estar ganhando corpo.
Uma subtil e silenciosa preguiça pode levar a abandonar a
reflexão sobre o nosso próprio objecto de trabalho.
Aos poucos cedemos ao comité de não mais colocarmos
em causa quem somos, o que sabemos, o que fazemos.
As últimas décadas tenderam a tecnicizar as ciências biológicas.
De novo, insistem connosco em que as soluções virão de sofisticadas tecnologias e de que pouco
vale questionarmos os desafios políticos e sociais do nosso tempo.
À força de termos que sobreviver vamos aceitando encaixes, ofertas e arranjos.
A ideia de que não vale a pena tentar uma outra utopia conduz à acomodação
e ao conformismo intelectual.

A própria ideia de Ciência que nos parece isenta e acima de toda a suspeita é uma ideia tão
exclusivista que pode ser entendida como uma ideia gulosa.
Gulosa e glutona.
Engorda não por comer mas por fazer dieta.
E essa dieta consiste em ignorar outras sabedorias, outros sistemas de conhecimento.

Mia Couto, in 'Pensatempos'

Sem comentários: