A cegueira e a obstinação dos homens lembra-me às vezes
a cegueira e a
obstinação das varejeiras enfrenizadas
contra as vidraças.
Bastava um
momento de serenidade, dez-réis de bom senso,
e em qualquer fresta
estava a liberdade.
Mas o demónio da mosca, quanto mais a
impossibilidade
se lhe põe diante, mais teima.
O resultado é cair morta
no peitoril.
Não se pode fazer ideia da maravilha de criança que era a filha
de um
poeta de meia tigela que hoje me lia versos impossíveis,
a empurrá-la
enfastiado com a mão esquerda, quando ela
graciosamente o interrompia.
A
canção enluarada, a quadra perfeita, o soneto verdadeiro
que
justificavam aquele homem estavam ali, a brilhar
nos olhos da pequenita;
e o desgraçado às turras à janela,
a zumbir e a magoar-se, sem ver que
tinha diante de si
o verdadeiro caminho da salvação!
Miguel Torga, in "Diário (1943)"
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