loading...

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Por um Mundo escutador

Não existe alternativa: a globalização começou com o primeiro homem.
O primeiro homem (se é que alguma vez existiu «um primeiro» homem) era já a humanidade inteira.
Essa humanidade produziu infinitas respostas adaptativas.
O que podemos fazer, nos dias de hoje, é responder à globalização desumanizante
com uma outra globalização, feita à nossa maneira e com os nossos propósitos.
Não tanto para contrapor.
Mas para criar um mundo plural em que todos possam mundializar e ser mundializados.
Sem hegemonia, sem dominação.
Um mundo que escuta as vozes diversas, em que todos são, em simultâneo, centro e periferia.

Só há um caminho.
Que não é o da imposição.
Mas o da sedução.
Os outros necessitam conhecer-nos.
Porque até aqui «eles» conhecem uma miragem.
O nosso retrato - o retrato feito pelos «outros» - foi produzido pela sedimentação de estereótipos.
Pior do que a ignorância é essa presunção de saber.
O que se globalizou foi, antes de mais, essa ignorância disfarçada de arrogância.
Não é o rosto mas a máscara que se veicula como retrato.
A questão é, portanto, a de um outro conhecimento.
Se os outros nos conhecerem, se escutarem a nossa voz e, sobretudo, se encontrarem nessa descoberta
um motivo de prazer, só então estaremos criando esse território de diversidade e de particularidade.

O problema parece ser o de que nós próprios — os do Terceiro Mundo — nos conhecemos mal.
Mais grave ainda: muitos de nós nos olhamos com os olhos dos outros.
Um velho ditado africano avisa: não necessitamos de espelho para olhar o que trazemos no pulso.
A visão que temos da nossa História e das nossas dinâmicas não foi por nós construída.
Não é nossa.
Pedimos emprestado aos outros a lógica que levou à nossa
própria exclusão e à mistificação do nosso mundo periférico.
Temos que aprender a pensar e sentir de acordo com uma
racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa individualidade.

Fomos empurrados para definir aquilo que se chamam «identidades».
Deram-nos para isso um espelho viciado.
Só parece reflectir a «nossa» imagem porque o nosso olhar foi
educado a identificarmo-nos de uma certa maneira.
O espelho deforma o que trazemos amarrado no pulso.
Pior que isso: amarra-nos o pulso.
E aprisiona o olhar.
Onde deveríamos ver dinâmicas vislumbramos essências,
onde deveríamos descobrir processos apenas notamos imobilidade.

Mia Couto, in 'Pensatempos'

Sem comentários: