Sou escritor e cientista.
Vejo as duas actividades, a escrita e a
ciência,
como sendo vizinhas e complementares.
A ciência vive da
inquietação, do desejo
de conhecer para além dos limites.
A escrita é
uma falsa quietude, a capacidade
de sentir sem limites.
Ambas resultam
da recusa das fronteiras, ambas
são um passo sonhado para lá do
horizonte.
A Biologia para mim não é apenas uma disciplina
científica
mas uma história de encantar,
a história da mais antiga epopeia que é a
Vida.
É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar.
É o mesmo que
eu peço à literatura.
Muitas vezes jovens me perguntam como
se redige uma peça literária.
A
pergunta não deixa de ter sentido.
Mas o que deveria ser questionado era
como se mantém uma relação com o
mundo que passe pela escrita
literária.
Como se sente para que os outros se
representem em nós por
via de uma história?
Na verdade, a escrita não é uma técnica e não
se
constrói um poema ou um conto como
se faz uma operação aritmética.
A
escrita exige sempre a poesia.
E a poesia é um outro modo de pensar
que
está para além da lógica que a
escola e o mundo moderno nos ensinam.
É
uma outra janela que se abre para estrearmos
outro olhar sobre as coisas
e as criaturas.
Sem a arrogância de as tentarmos entender.
Apenas com a
ilusória tentativa de nos
tornarmos irmãos do universo.
Não existem fórmulas feitas para imaginar
e escrever um conto.
O meu
segredo (e que vale só para mim) é
deixar-me maravilhar por histórias
que escuto,
por personagens com quem me cruzo e deixar-me
invadir por
pequenos detalhes da vida quotidiana.
O segredo do escritor é anterior à
escrita.
Está na vida, está na forma como ele está disponível
a
deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do quotidiano.
Mia Couto, in 'Pensatempos'
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