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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Felicidade e Alegria

Não creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica 
ou cujo último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja 
essencial o viver alegre. 
O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o conceito de 
felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o 
que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa 
desferir voo. 
Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que, visto por 
todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de sua 
infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria 
serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os 
homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate 
que na paz, e sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de 
obediência ou melhor, de disponibilidade, de quem finalmente entendeu 
as estruturas da vida.
Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a 

viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos 
para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, 
a cegueira, a inflexibilidade das leis mecânicas, que são bem as 
representantes do Fado, e cuja grandeza verdadeira só se pode sentir 
bem no desastre; é quando a catástrofe chega que a fatalidade se mede em 
tudo o que tem de divino, e foi pena que não fosse esta a lição essencial que 
tivéssemos tirado da tragédia grega; como pena foi que só tivéssemos olhado 
o fatalismo dos árabes pelo seu lado superficial.
Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a outra grande 

força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o valor moral 
no desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do fatal; 
não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado: 
talvez o estivesse antes ou depois da prisão; mas era realmente um espírito 
de liberdade e um portador de liberdade o que, agrilhoado a montanha, 
se sentiu mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, 
superá-lo ou não, ser alegre ou não. E este ser alegre não significa de modo 
algum a alegria daquele tipo americano de «Quebre uma perna e ria»; 
acho que eram muito mais alegres as pragas dos velhos soldados de Napoleão. 
No fundo é o seguinte: é necessário, ajudando a realizar o homem no que 
tem de melhor, que a mesma energia que se revelou pela física no mundo 
da extensão, se revele pelo espírito no mundo do pensamento e domine a 
primeira vaga de energia, como onda rolando sobre onda mais alto vai. 
E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que não poderá nunca 
suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas espécies ou 
os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. 
Só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; 
às vezes por aquela piedade da fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; 
só se deve desejar a alguém que se cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça 
e a sua superação.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'


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