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domingo, 14 de junho de 2020

Leia, ouça, veja, mas sobretudo, pense

Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda 
ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, 
capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais 
rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência 
em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade 
do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento 
do passado e base de arranque para o futuro. 
A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; 
e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas 
de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, 
ou menos duradouras. 
Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, 
e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de 
outros nos enriquece a nós. 
Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados 

de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios 
do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano 
e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam 
de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. 
Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; 
o que nos dizem muitas vezes nos parece de nenhuma importância, 
mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no 
conteúdo do que se disse; porventura a palavra-chave estava aí, 
mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; 
e no vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. 
Ouça.
No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem 

descendia do macaco notou-se, para os distinguir, que um, 
mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, 
mesmo que antropóide superior, nem olhava o desenho. 
Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde 
as pinturas ou gravuras rupestres, cujo verdadeiro significado 
ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo 
significado igualmente muitas vezes nos podemos interrogar 
e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, 
da publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam 
cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão de iluminar, 
inspirar e consagrar o mundo. 
Imagem o cerca. 
Veja.
Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima 
de pensamento, já livre de muita impureza de minério bruto, 
porquanto antes do seu outros pensamentos o pensaram; 
mas, por o pensarem, alguma outra impureza lhe terão juntado. 
Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum 
sentimento, excepto o do amor de entender, de ver o mais possível 
claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe 
que nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, 
pelo critério da coerência, pela concordância dos factos; 
acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta 
para certezas que nunca deixe de ver como provisórias, excepto uma, 
a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; 
ao resto porá de lado até que o seja, até que possa pôr nos pratos 
da sua balancinha de razão. 
A tudo pese. 
Pense.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'


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