Cada vez mais desesperado.
Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta.
Fé? Evidentemente... Enquanto há vida, há esperança
— lá diz o outro.
Mas, francamente: fé em quê?
Num mundo que almoça valores, janta
valores,
ceia valores, e os degrada cinicamente,
sem qualquer
estremecimento da consciência?
Peçam-me tudo, menos que tape os olhos.
Bem basta quando a terra mos cobrir! — Ah!
mas a humanidade acaba por
encontrar o seu
verdadeiro caminho — dizem-me duas células
ingénuas do
entendimento.
E eu respondo-lhes assim :
Não, o homem não tem caminhos
ideais e caminhos de ocasião.
O homem tem os caminhos que anda.
Ora este
senhor, aqui há tempos, passou três séculos
a correr atrás dum mito que
se resumia em queimar,
expulsar e perseguir uns outros homens, cujo
pecado era este:
saber filosofia, medicina, física, astronomia,
religião, comércio
— coisas que já nessa época eram dignas e
respeitáveis.
Miguel Torga, in "Diário (1942)"

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