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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Só sou exigente com os amigos

Estou a exigir muito de si? 
Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos? 
Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte, 
tenha você a certeza de que o hei-de cumprir. 
Você há-de dar tudo o que puder, e mesmo, e sobretudo, o que não puder; 
porque só há homem, quando se faz o impossível; 
o possível todos os bichos fazem. 
Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: agora mais alto! 
Que me importa que você caia. 
O que é preciso é que você se levante. 
Os fracos vieram só para cair, mas os fortes vieram para esse tremendo 
exercício: cair e levantar-se; sorrindo. 
Já sei que muitas vezes se há-de revoltar contra mim e desejar que eu 
fosse menos duro e lhe desse uns momentos de repouso; 
mas do repouso faria você férias e das férias uma vida de gato. 
Eis o que nunca lhe consentirei. 
O que é bonito e bom é a vida de cão. 
O que você vai tirar, se for grande, de roer ossos, e levar pontapés 
e beber água das valetas!

Pode ser que, porém, você se revele cão de luxo; são bichos bastante 

antipáticos para mim, mas não é por isso que lhes farei mal; pelo contrário. 
Só maltrato os amigos. 
Para cãezinhos de pêlo encaracolado e patinhas que mal aguentam o corpo 
tenho um fornecimento de almofadas, pires de leite, bolacha macia, 
perfumes, pentes finos, e nojo. 
Um fornecimento inesgotável e que você utilizará quando quiser. 
Posso juntar-lhe também um pouco de piedade, porque no fundo os cães 
nem têm mérito nem têm culpa. 
E ainda uma certa pena por ter dado conselhos de força e de altura a quem 
era fraco e baixo; mas não me parece ter perdido tempo: se os conselhos não 
servirem a você, a mim serviram; que bem preciso deles, e ninguém mos dá.

Agostinho da Silva, in 'Sete Cartas a um Jovem Filósofo'


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