Estou a exigir muito de si?
Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos?
Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e, pela minha parte,
tenha você a certeza de que o hei-de cumprir.
Você há-de dar tudo o que puder, e mesmo, e sobretudo, o que não puder;
porque só há homem, quando se faz o impossível;
o possível todos os bichos fazem.
Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: agora mais alto!
Que me importa que você caia.
O que é preciso é que você se levante.
Os fracos vieram só para cair, mas os fortes vieram para esse tremendo
exercício: cair e levantar-se; sorrindo.
Já sei que muitas vezes se há-de revoltar contra mim e desejar que eu
fosse menos duro e lhe desse uns momentos de repouso;
mas do repouso faria você férias e das férias uma vida de gato.
Eis o que nunca lhe consentirei.
O que é bonito e bom é a vida de cão.
O que você vai tirar, se for grande, de roer ossos, e levar pontapés
e beber água das valetas!
Pode ser que, porém, você se revele cão de luxo; são bichos bastante
antipáticos para mim, mas não é por isso que lhes farei mal; pelo contrário.
Só maltrato os amigos.
Para cãezinhos de pêlo encaracolado e patinhas que mal aguentam o corpo
tenho um fornecimento de almofadas, pires de leite, bolacha macia,
perfumes, pentes finos, e nojo.
Um fornecimento inesgotável e que você utilizará quando quiser.
Posso juntar-lhe também um pouco de piedade, porque no fundo os cães
nem têm mérito nem têm culpa.
E ainda uma certa pena por ter dado conselhos de força e de altura a quem
era fraco e baixo; mas não me parece ter perdido tempo: se os conselhos não
servirem a você, a mim serviram; que bem preciso deles, e ninguém mos dá.
Agostinho da Silva, in 'Sete Cartas a um Jovem Filósofo'
Sem comentários:
Enviar um comentário