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quarta-feira, 17 de junho de 2020

Somos cidadãos sem laços de cidadania

É escusado.
Em nenhuma área do comportamento social conseguimos
encontrar um denominador comum que nos torne a convivência harmoniosa.
Procedemos em todos os planos da vida colectiva como figadais adversários.
Guerreamo-nos na política, na literatura, no comércio e na indústria.
Onde estão dois portugueses estão dois concorrentes
hostis à Presidência da República, à chefia dum partido,
à gerência dum banco, ao comando de uma corporação de bombeiros.
Não somos capazes de reconhecer no vizinho o talento que nos falta,
as virtudes de que carecemos.
Diante de cada sucesso alheio ficamos transtornados.
E vingamo-nos na sátira, na mordacidade, na maledicência.
Nas cidades ou nas aldeias, por fás e por nefas, não há ninguém sem alcunha,
a todos é colado um rabo-leva pejorativo.
Quem quiser conhecer a natureza do nosso relacionamento,
leia as polémicas que travámos ao longo dos tempos.
São reveladoras.
A celebrada carta de Eça a Camilo ou a também conhecida
deste ao conselheiro Forjaz de Sampaio dão a medida exacta da verrina
em que nos comprazemos no trato diário.
Gregariamente, somos um somatório de cidadãos sem laços de cidadania.

Miguel Torga, in "Diário (1985)"

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