Creio que tem havido sempre na nossa terra uma descabida
preocupação
canónica à ilharga de cada artista.
Interessa mais ao zelo nacional
averiguar se um poeta
morreu sacramentado, do que ler os seus versos.
Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva
à morada das musas e
da beleza; espreita-se da janela,
mas é para ver se ele vai à missa.
Ora isto é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente
não sabem nem
querem saber do valor de um poema,
do mundo de liberdade e de
independência que ele encerra.
E uma gente assim não me convém, nem
tão-pouco o
Deus intolerante que servem.
Por isso me vou divertindo com
as minhas divindades naturais,
luciferinamente, certo de que o diabo é
ainda uma grande companhia.
Foi a ele que Jesus disse que o seu reino
não era deste mundo.
E o meu, precisamente, é.
Miguel Torga, in "Diário (1946)"
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