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domingo, 13 de junho de 2021

7 A Nossa Garça

Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. 
São viúvas de Xaraiés? 
Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada. 
Há uma sombra de dor em seus vôos. 
Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos, 
enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei. 

É a de não ser ela uma ave canora. 
Pois que só grasna — como quem rasga uma palavra.
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros.
Mas de cores e movimentos. 

Lembram Modigliani. 
Produzem no céu iluminuras. 
E propõem esculturas no ar.
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos.

Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges. 
E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.
Aqui seu vôo adquire raízes de brejo. 

Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura.
À força de brancuras a garça se escora em versos com lodo?
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças.
Insinuando contrastes (ou conciliações?) entre o puro e o impuro, etc etc. 

Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos?
Que Deus os livre!)


Manoel de Barros
Publicado no livro Livro de Pré-Coisas: 
Roteiro para uma Excursão Poética no Pantanal (1985)
Poema integrante da série Pequena História Natural.

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