Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras.
São viúvas de Xaraiés?
Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada.
Há uma sombra de dor em seus vôos.
Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos,
enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei.
É a de não ser ela uma ave canora.
Pois que só grasna — como quem rasga uma palavra.
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros.
Mas de cores e movimentos.
Lembram Modigliani.
Produzem no céu iluminuras.
E propõem esculturas no ar.
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos.
Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges.
E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.
Aqui seu vôo adquire raízes de brejo.
Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura.
À força de brancuras a garça se escora em versos com lodo?
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças.
Insinuando contrastes (ou conciliações?) entre o puro e o impuro, etc etc.
Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos?
Que Deus os livre!)
Manoel de Barros
Publicado no livro Livro de Pré-Coisas:
Roteiro para uma Excursão
Poética no Pantanal (1985)
Poema integrante da série Pequena História
Natural.
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