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quinta-feira, 14 de março de 2019

Elegia dos Amantes Lúcidos - Parte 1

Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge! 


Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destino 


E não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insecto 


Meu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um monge 


Ah, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo! 


Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia? 


Nem homem nem mulher. Só a moeda antiga:
Uma inflação de deuses que não pode parar
Como um pássaro cego à nora da intriga
Que é a morte no centro connosco a circular. 


Será o mesmo tempo que nos cabe?
Talvez sejas a raça prematura
Duma gota de orvalho que se há-de
Negar à minha sede desértica e futura. 


Como o brilho dum sol partido ao meio
Damos luz pela nostalgia da metade.
Partes para ser gaivota no meu seio.
Mas não trazes no bico uma cidade. 


Aqui pousou um pássaro de lume
Que deixou um voo subterrâneo
Na repetida vibração do gume
Que cada hora traz à lâmina do crânio. 


 (Continua)

 Natália Correia, in "Passaporte"

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