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segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Trevas

De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia 
gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, 
nascendo dos pinheiros e morrendo nelles. 
E os punhaes não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias 
de lençoes de linho escorridos de hombros franzinos. 
E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes 
de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores. 
E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam. 

E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça
 com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos
 p'ra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha 
como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. 
As sombras ao vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios. 

A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto 
com perolas desirmanadas. 
E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza 
eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. 
Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se. 

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros 
entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos, havia 
surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os 
pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes. 

A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. 
E as sombras em danças macabras fugiam 
fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar. 

Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, 
chocam-se nos ares os punhaes acêsos. 
Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar 
ladainhas da Morte. 
Veem mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. 
Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos 
levam-me a alma... 
Mas a cigarra em algazarra de alêm do monte vem dizer-me 
que tudo dorme em silencio na escuridão. 

Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada. 

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'


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