Coisa limitadora, a amizade!
Sobretudo negativa, no ponto de vista
intelectual.
Ou é uma contínua transigência, ou uma fonte de arrelias.
Só a oposição anónima — inimiga, no fundo — estimula e faz criar.
Diante
dela, o espírito voa como entende. Nem há direcções proibidas,
nem
poços de ar pessoais, onde se cai com o coração na boca.
Parece à primeira vista que seria justamente de um convívio pacífico,
diário, fraterno, que sairia o tónico ideal de que todo o artista
necessita.
Mas não.
Sem falar no cansaço a que somos atreitos, e que ao
cabo de certo tempo
deseroíza tudo — poemas e virtudes —, criando à
volta de cada obra ou
de cada atitude um vácuo de aceitação amorfa,
neutra, habitual, por
temperamento e por motivos de vária ordem a nossa
vida individual e social,
passados os breves dias da mocidade, entra num
túnel crepuscular de anedotas e digestões.
E, naturalmente, uma
presença ou consciência que possa perturbar esse nirvana é olhada com
enfado.
Daí que instintivamente cada qual vá limando, até sem dar por
isso, as arestas do seu espírito,
para não levantar atritos.
A guerra
perpétua é impossível, tanto nas relações dos povos, como nas das
criaturas.
E surge insensivelmente o compromisso: nem se medem as
irregularidades do caudal criador,
para não ofender, nem se agitam as
águas estagnadas do afecto, para não perturbar.
Ora um artista não pode
limar as arestas de maneira nenhuma.
Pelo contrário.
Se os outros
envelhecem, desistem, e por cansaço ou piedade o poupam a críticas e a
desilusões,
ele é que precisa de estar sempre vivo e alerta.
E eis a
mortificação. Sedento de calor humano e agrilhoado ao seu destino de
inquietador,
o desgraçado vê-se entre a espada e a parede.
Para ser fiel
aos sentimentos, tem de parar, para não trair a sua estrela, tem de
prosseguir.
E nessa incómoda carroça de duas rodas, que caminham em
direcções opostas, lá vai ele,
umas vezes a esconder o que faz, outras a
ler uma página como quem espeta um punhal
ou arrisca a própria vida.
Miguel Torga, in 'Diário (1952)'
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