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segunda-feira, 19 de julho de 2021

I Matéria da Poesia

1.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia


O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
(...)


O que é bom para o lixo é bom para a poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços


As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora


Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória


As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.


2.
Muito coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a — Esfregar pedras na paisagem.
b — Perder a inteligência das coisas para vê-las.
(Colhida em Rimbaud)
c — Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d — Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em
Carlitos.
e — Perguntar distraído: — O que há de você na
água?
f — Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas
de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as
crianças e as putas do jardim o entendiam.
g — Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos,
terens de rua e de música, cisco de olho, moscas
de pensão...
h — Aprender a capinar com enxada cega.
i — Nos dias de lazer, compor um muro podre para
caramujos
j — Deixar os substantivos passarem anos no esterco,
deitados de barriga, até que eles possam carrear
para o poema um gosto de chão - como cabelos
desfeitos no chão — ou como o bule de Braque
— áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro
— um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de
folhas.
l — Jogar pedrinhas nim moscas...
(...)

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Manoel de Barros
Publicado no livro Matéria de Poesia (1974)


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