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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Mar absoluto

Cecília Meireles
Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.


Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.


E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.


Então, é comigo que falam, sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém, tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.


E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas, barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros e cantos náuticos.


E fico tonta.acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.


Queremos a sua solidão robusta, uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.


O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.


O mar é só mar, desprovido de apegos, matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém, e sendo depois a pura 

sombra de si mesmo, por si mesmo vencido. 
É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra, ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.


Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo, e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.


Baralha seus altos contrastes: cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo jardins, estrelas, caudas, 

antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.


Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,mas sem fraqueza nenhuma.


E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite a o meu destino.


Não me chama para que siga por cima dele, nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. 

É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.


Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.


E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.


Não é apenas este mar que rebola nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.


E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim uma face espantosa.


E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante, nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.


Cecília Meireles 

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