Nós hoje estamos ao mesmo tempo na melhor época da humanidade e na pior.
Tão depressa sentimos que tudo em nós e em redor marcha uníssono em
frente,
como subitamente um grande atrito emperra as nossas próprias
articulações.
Há ao mesmo tempo qualquer coisa que nos desacompanha e
qualquer coisa
que nos anima.
Há caminhos inteiros que terminam súbito e
não há caminho inteiro e vitalício.
E nós desejamos francamente acertar
com a direcção única e
onde o único obstáculo seja de verdade o
mistério do futuro.
Todo aquele que se lance mais animado pela palavra espírito, não creia
que
faz mais do que estar sujeito a uma determinante actual.
A
consciência material, como acontece hoje,
dá entrada natural para o
campo do espírito.
Assim também o espírito tem existência vital segundo
a
qualidade de consciência da matéria.
O espírito apartando da matéria
não é deste mundo.
Espírito e matéria confundem-se em vida.
Acontece, porém, que os fugitivos da matéria transformam em si
esse
unilateralismo ao ingressar no espírito, e ficam outra vez de banda,
inversamente agora, mas como antes.
Ora o espírito não tem mais
dimensões do que a matéria; são outras,
mas idênticas, que se justapõem,
poro com poro.
Mais digo que quem está saturado da matéria não é o
mesmo que aquele
que está bem avisado dela; assim é que o fugitivo da
matéria há-de
forçosamente queimar as asas na própria luz do espírito.
O
espírito como a matéria, ambos juntos, não se prestam a manejar
os
outros, mas muito simplesmente a animar cada um.
Sempre que cada qual
sinta mais necessidade de espírito do que
de conhecimento da matéria,
há-de fatalmente cair em abstracção
de espírito, isto é, salta fora do
seu próprio «controle».
Do mesmo modo, de nada lhe servirá o «controle»
exclusivo da
matéria sem a animação própria do espírito.
Acondicionados o espírito e a matéria em cada indivíduo humano, torna-se
possível
o seu desenvolvimento, o seu progresso e até o seu máximo de
amplidão particular.
Não há possibilidade de progresso colectivo que não venha justamente
iniciado desde as condições pessoais de cada indivíduo humano.
Isto é, o
espírito tomado colectivamente não é senão o ponto de encontro
das
várias direcções individuais.
Colectivamente o espírito é o lugar geral
da
comunicação entre os vários particulares.
Porém, partir do espírito
tomado colectivamente para atingir e valorizar
cada uma das direcções
particulares do espírito, é pôr de propósito
as coisas de pernas ao ar.
Pelo contrário, completamente ao contrário, valorizem-se as condições
materiais da vida de cada indivíduo humano (digo indivíduo humano,
preferívelmente a indivíduo social, e sobretudo para que não se confunda
com indivíduo de profissão dependente imediatamente do Estado),
proteja
o Estado a vida material e quotidiana de cada um e de
todos os
particulares da colectividade, que uma vez criada essa confiança
de cada
qual com a vida material de todos os dias, o espírito lá está
iminente
em cada caso pessoal dos nossos compatriotas e capaz
de com todo o seu
ineditismo particular de trazer mais luz para os negócios
colectivos do
que quantos sistemas políticos lha possam garantir.
Almada Negreiros, in 'Textos de Intervenção'
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