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sábado, 2 de maio de 2020

O Individual como Base do Colectivo

Tudo quanto é apenas colectivo é desordem.
A ordem vem da composição individual.
Mas a composição individual para formar em si a ordem
necessita de que esta também se projecte no colectivo.
A expressão do colectivo é o pânico.
O terror só se submete pelo terror.
O pânico tem duas expressões de terror: a centrífuga e a centrípeta.
A expressão que se desfaz a si mesma e a que permanece estática e se adentra.
A única maneira de aparentar a ordem no colectivo é manejar o pânico.
Mas como todo o estado psíquico, por mais inteiro que se apresente tende a
suavizar-se se era violento e a tornar-se violento se era suave, é necessário para
manter o estado de pânico, que se lhe estabeleçam tantas modalidades diferentes e
sucessivas que consigam realmente fazer desviar as atenções da sua insistência.
Porém, este processo não tem fim.
É o processo da mística colectiva.
Filha do desespero individual, a mística colectiva não faz alterar a realidade mas
consegue temporáriamente submeter todos os indivíduos às mesmas circunstâncias.
E até que se formem as novas élites as místicas colectivas são espera.
Ao vermos os grandes exércitos, reluzentes nas paradas ou disfarçados com a
própria cor da terra das batalhas, admiramos involuntáriamente aquela extraordinária
coordenação de movimentos de comando e de obediência.
Temos uma ideia da ordem e a essa ideia chamaríamos perfeitamente.
É efectivamente uma ideia da Ordem, o que não é, é a Ordem.
A Ordem não se estabelece assim por vozes de comando exteriores mas sim por
pleno assentimento entre os seus próprios obedientes.
A Ordem é um culto interno.
Contudo, porque são menos os perfeitos obedientes do que todos aqueles que hão-de
integrar-se na Ordem, assim vem a necessidade de aparentá-la constantemente.
É indispensável.
Toda a manifestação colectiva tem o seu auge incomparávelmente
menos duradoiro do que o seu letargo secular.
O que é efectivamente permanente e quotidiano é a presença individual
humana, o caso pessoal de cada um de nós.
É esta a única base e o único fim de toda a sociedade.
Por mais genialidade que se ponha no artíficio colectivo, se este não visa
imediatamente a raridade de cada um dos seus indivíduos, isto é,
se o todo colectivo não sabe contar com a maneira pela qual cada
um o possa servir, em vez de uma estabilidade progressiva teremos
uma estabilidade aguentada, em permanente eminência de se desunir e arruinar-se.

Almada Negreiros, in 'Textos de Intervenção'

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