Com a devida vénia me reparto junto do tampo de mármore meu secretário
tão certo.
Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra?
Logrei
substituí-la numa manhã óptima mas não esta em que a mola salta
reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise.
Na confraria dos reclusos outras quimeras se aventam como Sol, Mãe,
Amada, até que o tempo nosso inimigo se distancie e nos abandone por
instantes.
Na laje já sobre a qual o papel branco me obedece sem que o
habitem outros sinais, pequeninos veios avolumam-se em áreas mais
densas, configurando pássaros de porcelana chinesa.
Afundo-me neste
fundo para descobrir-lhes um sentido, branco, amarelo, de novo branco,
cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se,
perder-se, reagrupar-se.
De anacoreta nada tenho, só de multidões entre Cacilhas, Piedade e o
Barreiro.
E Campo de Ourique, que digo!
A minha mão move-se, o
pensamento pára, descubro as uvas pendentes como se fora Verão e o Sol
ferisse como se o olhara de frente.
Nem o ruído dos pássaros habituais
junto à janela nos veio dar os bons dias, o funcionário impreterível
virá à hora impreterível.
Muito longe fora de portas um galo ou a sua
ausência.
Tenho uma toalha, um guarda-fato, uma cama.
Apalpo os objectos
configuro-os às mãos acostumadas, sento-me.
Lobrigo desejos; nas veias
corre sangue sem mácula devolvido à força que o agita.
Chamo a mim a
reserva inesgotável de Alegrias, a raiva dos oprimidos, a bondade de um
homem simples com quem, às portas de Arraiolos, me embebedara num dia de
sol e serra.
(Escrito na prisão de Caxias)
Zeca Afonso, in 'Textos e Canções'

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