loading...

segunda-feira, 18 de março de 2019

Prosema II - Texto de Zeca Afonso (escrito na prisão de Caxias)


Para iludir a dúvida, privado de equipagens, nenhum
dos habituais pontos de referência vem em meu auxílio.
Procuro um ancoradouro distante, fora do estreito
mundo em que me movo.
Inútil: bichos, objectos minúsculos, paredes brancas
pontilhadas, o botão da campainha à minha esquerda.
A memória retira-me a sua cobertura instantânea.
Tento galgar esta padiola dentro da minha cabeça e
daí lançar-me à desfilada sobre uma estepe daninha
ou cair do alto da montanha onde guardo o meu ninho de águia.
Digo-vos que só pretendo A Grande Casa Alugada da Minha Infância,
o vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara
de que uma criança existia.
O velho desapareceu inesperadamente num
pequeno porto do Zaire e deixou-me só.

(Escrito na prisão de Caxias) Zeca Afonso, in 'Textos e Canções'

Sem comentários: